segunda-feira, 4 de novembro de 2019

ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE POETAS/PE E ALAG OUTORGAM PRÊMIOS LITERÁRIOS DO CONCURSO ADEILDO NUNES - 2019

1º, 2º E 3º LUGARES DE POESIA





1º, 2º E 3º LUGARES DE PROSA POÉTICA







DIA DOS MORTOS NA AMAZÔNIA




NARRAÇÃO
            Silêncio no igarapé. Começando a madrugada. A água escura, marrom pela acidez da decomposição das folhas, porém, translúcida, (semelhante a uma garrafa de vidro marrom), fria, refletindo as primeiras luzes do amanhecer que conseguem atravessar a fechada folhagem da mata gigante.
            Uma neblina de evaporação sobe desde as áreas inundadas. O ambiente se sente opressor pela sua grandeza, pelo seu isolamento e é nesse misterioso amanhecer que os indígenas chamam os espíritos de seus mortos, com sons rítmicos. Espíritos que permanecem na floresta e que têm o poder para influenciar os bons e os maus, trazendo paz a uns e amaldiçoando os outros.
            A tribo respeita e ao mesmo tempo teme os espíritos dos mortos. Toda a sua crença no mundo espiritual se identifica com a mata circundante, seus sons, seus mistérios e a profundidade horizontal à frente, que entre troncos e cipós parece não ter fim.
            As lendas são muitas; têm espíritos que levam crianças antes mesmo de nascerem, outros provocam deformações, outros atacam idosos que sofrem, claudicam e desaparecem levados por eles, outros trazem chuvas torrenciais, que têm poder quase exterminador, obrigando a tribo a ficar protegida dentro das malocas. Os indígenas entendem estes fenômenos naturais como um castigo para aquele que tenha cometido transgressões contra o código de ética da tribo, ou contra seu Cacique, Pajé ou Xamã.  
            A Amazônia é misteriosa para seus habitantes naturais, e para nós duplamente assustadora.
            Os sons emitidos pelas espécies animais são variados: são agudos, graves, gritos, gemidos rítmicos e cadências estridentes. Centenas de macacos emitem um clamor exasperante, junto a cantos afinados de pássaros exóticos. A mim, particularmente, me afeta este concerto estranho e ensurdecedor. Começo a sentir um desassossego esquisito que se inicia no “ouvir” e que logo após se espalha pelo meu corpo e mente, até dominar meu raciocínio lógico, fazendo-me tremer de pavor irracional.
            Parece-me que os mortos estão perto, flutuando entre a folhagem. Sem entender muito os motivos, começo a imitar as mulheres indígenas, e a seguir seus rítmicos cantos batendo ao mesmo tempo, com os pés descalços no solo místico da floresta, que se ergue poeirento no descampado ao redor da taba.
            Esta experiencia atemoriza-me e me leva a outros níveis de consciência. Pergunto-me quem sou, qual é o recanto desconhecido de mim mesma que aflora neste instante sem eu saber porquê, sem explicação racional alguma, transfigurando-me em um ser totalmente instintivo, alheio à civilização e a séculos de aculturação impressa nos meus genes. Transformo-me em alguém diferente, que absorve os mistérios selváticos pela pele, pelo ouvido, pelo pensamento que se acalma e adormece. Sinto minha alma avolumando-se e dominando totalmente meu corpo e pensamento.
            O sol vai ganhando altura. A floresta se ilumina com os raios solares que se filtram através do teto rendado verde escuro, vegetal. Os macacos silenciam pouco a pouco, os pássaros assobiam musicalmente, os jacarés submergem tranquilos e desaparecem, e os insetos começam sua dança infernal.
            Os mortos acalmam-se, calam-se, agradecem o cerimonial prestado em sua honra e vão se retirando do local. O grupo de indígenas, livre da influência dos seus antepassados, entra no igarapé gelado e toma banho. Cada um deles limpa a sujeira de seu corpo e de seu próprio espirito. Relaxa, rir, brinca e tudo no ambiente volta ao normal.
            As Vitórias Regias (Vitória amazônica) que abriram suas corolas à noite liberam seu adocicado perfume, e com o sol vão fechando as suas flores pouco a pouco. entre as grandes folhas circulares flutuantes com uma dobra na borda de cor avermelhado. Os Aguapés ou Jacintos de Água, (Eichhornia crassipes) mostram toda a beleza de suas flores azuis e seus pecíolos bulbosos, como esponjas, que lhe permitem flutuar e cobrir a superfície aquática.  Na altura de Mognos e Sumaúmas as bromélias encantam com seu esplendor rústico e selvagem. O pássaro ferreiro, Araponga da Amazônia, nos arredores do Rio Negro, canta. E seu canto tem um som igual ao de um martelo batendo numa bigorna. Parece-me um sino de um golpe só. 
            A floresta respira, vibra, vive seu dia de glória e paz depois da homenagem aos seus mortos tribais.
            Eu apenas faço uma oração de agradecimento ao bom Deus, que me trouxe até aqui, o que me permitiu participar dos mistérios desta “terra brasilis”. (Dea Coirolo – 1991-AM)

Dea Coirolo – Copyright
Gravatá, PE/2019